JOHANN GOTTLIEB FICHTE
Johann Gottlieb Fichte nasceu em Rammenau, na Saxônia, em 1762. Fez o curso superior na Universidade de lena. Conseguida a láurea, dedicou-se ao estudo da filosofia moderna, sobretudo kantiana, e escreveu um ensaio, Critica de toda revelação, que publicou anônimo. A obra foi atribuída a Kant, que esclareceu o equívoco, não poupando elogios ao autor, que ganhou assim grande notoriedade. A Universidade de lena lhe ofereceu, sob recomendação de Goethe, a cátedra de filosofia; Fichte aceitou, mas, em 1799, apenas cinco anos depois, acusado de jacobinismo e panteísmo, teve de abandonar a Universidade.
Novamente em cena em 1807, durante a invasão napoleônica da Prússia, com os famosos Discursos à nação alemã, foi nomeado professor de filosofia da Universidade de Berlim, criada naquele ano. Atacado de cólera, faleceu em 1814. As suas obras principais, além das já citadas, são: A missão do douto, a Doutrina da ciência e a Prescrição para a vida feliz.
Fichte foi o primeiro a notar as graves contradições do criticismo kantiano e a resolvê-las no sentido do idealismo, do qual é considerado o pai. O seu idealismo se distingue dos de Schelling e de Hegel pelo caráter prático e moral. A especulação fichtiana parte não de um problema especulativo, mas de uma interrogação prática, moral: “Qual é a missão do homem?” É somente em um segundo momento que se apresenta a questão “quais são as condições essenciais para que o homem, o eu, possa existir? Acontece assim que em Fichte a metafísica e a teorética em geral são, por assim dizer, subordinadas à moral e à prática. O mesmo não se verifica em Aristóteles e em Kant:
no primeiro, a moral e a prática são subordinadas à metafísica; no segundo, as duas ordens, especulativa e prática, são totalmente separadas.
O caráter ético da filosofia fichtiana é evidenciado por mais dois motivos: a essência do eu não consiste no conhecer, mas no querer (“a razão prática é a raiz de qualquer outra razão”); o mundo não é concebido como objeto do conhecimento, mas como obstáculo a superar: “Jamais encontramos o ser pelo prazer de contemplá-lo. O mundo se nos apresenta sempre como esfera dos nossos deveres. Um mundo diferente do atual não existe para nós”.
ESCOLHA DO SISTEMA
Segundo Fichte, são possíveis apenas dois sistemas filosóficos: o dagmatismo, que afirma a existência da coisa em si, e o idealismo, que nega a existência da coisa em si. Não é possível nenhum outro sistema porque não existe nenhuma outra coisa fora do sujeito pensante e do objeto pensado. Ora, abstraindo-se do objeto pensado, temos a afirmação do eu em si; e abstraindo do sujeito pensante, temos a afirmação da coisa em si; no primeiro caso, o idealismo; no segundo, o dogmatismo.
O dogmatismo considera a coisa em si como realidade fundamental, realidade esta que existe independentemente do pensamento ou, melhor, que é a sua causa. O idealismo considera o eu em si como a realidade última, causa das idéias e, portanto também das coisas, as quais só existem enquanto pensadas.
Tanto o dogmatismo como o idealismo têm argumentos a seu f avor, mas nenhum deles é decisivo; o filósofo tem, por isso, a liberdade de escolher um ou outro. Não se trata, porém, de uma escolha totalmente imotivada. Ela é determinada, no parecer de Fichte, pela inclinação de cada um: “A espécie de filosofia que alguém escolhe depende da espécie de homem que ele é”. O dogmatismo é abraçado por aqueles cuja consciência filosófica ainda é ingênua e considera a mente como um espelho que reproduz a realidade das coisas externas. Uma consciência filosófica mais amadurecida escolhe o idealismo porque ele assegura melhor a liberdade e a independência do eu e, com isso, também a sua espiritualidade.
Fichte escolhe o idealismo e se justifica assim: quando dizemos que alguma coisa é, não queremos referir-nos ao ser em si, mas somente ao ser para nós, ao ser que é estabelecido por nós; o fundamento do ser objetivo não é o ser em si, mas a atividade em virtude da qual ele é posto, isto é, o pensamento. Esta atividade é o seu próprio fundamento. Trata-se de uma atividade originária, a qual, além de sujeito, é também objeto imediato de si mesma: ela se intui, sendo assim auto-intuição ou autoconsciência. Em outras palavras, o ser para nós (o objeto) é possível somente sob a condição da autoconsciência: a consciência é, pois, o fundamento do ser.
O FUNDAMENTO ÚNICO DA FILOSOFIA
“Uma ciência não pode ter mais do que um princípio básico; se tiver mais do que um, não será uma, mas serão várias ciências. As outras proposições que uma ciência pode conter tiram sua certeza de sua conexão com o princípio básico”.
Também a filosofia, para merecer o nome de ciência, deve ser estruturada sobre um único princípio. A propósito deste ponto, Fichte faz uma crítica cerrada a Kant, dizendo, entre outras coisas, que ele não conseguiu unificar a filosofia porque, atribuindo-lhe a tarefa de responder a três perguntas (que coisa conhecer, que coisa fazer, de que coisa gozar), chegou a reconhecer três absolutos não ligados entre si: a natureza (mundo do saber científico), a liberdade (mundo do dever moral) e Deus (mediador entre a natureza e a liberdade). A razão última desta pluralidade está no reconhecimento implícito da existência da coisa em si~. reconhecimento gratuito, antes, contraditório. De fato, Kant afirmara primeiramente que a categoria da causalidade só pode ser atribuída ao fenômeno, mas depois atribuiu-a também à alma, ao mundo e a Deus, acabando assim por reconhecer a existência da coisa em si. A dificuldade é superada com a negação da existência da coisa em si. Deste modo Fichte restabelece a unidade da filosofia (restituindo-lhe o caráter de verdadeira ciência, que Kant tinha posto em dúvida) e, ao mesmo tempo, resolve o problema central da filosofia moderna, o da relação entre sujeito e objeto. O problema é resolvido com a eliminação do objeto. O criticismo kantiano já tinha reconhecido ao sujeito parte preponderante da construção do mundo da natureza, mas a sua ação era condicionada pelo número; agora o número desaparece, sendo seu lugar ocupado pela criatividade ilimitada do sujeito, do eu.
Esta solução tem ainda a vantagem de oferecer uma explicação unitária do universo, derivando toda a realidade de um único princípio, o de identidade, que Fichte formula como identidade do pensamento consigo mesmo: “Se penso A, penso verdadeiramente A”. Não é por acaso que Fichte escolhe a identidade do pensamento consigo mesmo para exemplificar o princípio de identidade; a escolha vale pela distinção entre filosofia e lógica. Também a lógica tem, como princípio fundamental, o princípio de identidade, mas atribui a ele somente valor abstrato, formal, de modo que também ela tem somente valor formal, não de ciência do real. Ao contrário disso, a filosofia, definida por Fichte como “doutrina da ciência”, é eminentemente ciência do real; os seus princípios não devem, por isso, ter somente valor formal, mas também real. O princípio de identidade, que lhe serve de fundamento, não pode ser um princípio vazio, mas deve ter um conteúdo, e o seu primeiro conteúdo não pode ser senão a identidade do pensamento consigo mesmo.
AS GRANDES LINHAS DO SISTEMA
A realidade primordial é, pois, o pensamento, e a sua atividade primária consiste na afirmação da identidade consigo mesmo. Mas, como legitimar uma afirmação tão pouco de acordo com os dados da experiência? Fichte julga poder fazê-lo tomando em consideração a natureza do homem, a qual, além de um princípio empírico, compreende também um princípio espiritual. A questão é saber qual é o fundamento último deste segundo princípio. O materialismo afirma que o fundamento é o não-eu. Ora, esta afirmação, segundo Fíchte, é megavelmente falsa: “É incontestavelmente falso que o eu puro seja um produto do não-eu — entendendo-se com este último termo, como eu também entendo, tudo o que se pensa existir fora do eu, e que, por isso, se distingue do eu e se contrapõe a ele. Uma proposição deste gênero exprimiria um materialismo transcendental, insustentável perante a razão”. O contrário é que é verdadeiro: o princípio espiritual do homem, o eu puro, constitui o fundamento também do não-eu. Eis o raciocínio com o qual Fichte procura provar este ponto: “É inegavelmente verdadeiro que o eu não pode ter consciência de si mesmo a não ser nas suas determinações empíricas, e que estas determinações empíricas pressupõem algo de externo ao eu. O próprio corpo do homem (que ele chama também de o seu corpo) é algo de externo ao eu. Fora desta ligação com o empírico externo, ele não seria nem mesmo homem, mas alguma coisa que permaneceria para nós totalmente impensável, se é que pode ser alguma coisa aquilo que não é nem mesmo ser de razão. ( . . . ) Pertencem, pois, ao homem não só o ser absoluto, o ser puro e simples, mas também certas determinações particulares deste seu ser. Ele não somente é, mas também é alguma coisa. Ele não diz somente: eu sou, mas também: eu sou isto ou aquilo. ( . . .) Isto acontece porque alguma coisa é fora dele. A consciência empírica de si (em outros termos, a consciência de qualquer determinação pessoal) não é possível a não ser que se pressuponha umnão-eu. Este não-eu deve agir sobre a capacidade receptiva do homem, que é chamada sensibilidade. Por isso o homem, enquanto é alguma coisa, é um ser que sente.
O raciocínio com o qual Fichte deduz do eu puro a existência do eu empírico e do não-eu poderia ser formulado como segue. A realidade tem um único fundamento, o qual só pode ser de natureza espiritual, isto é, só pode ser o pensamento. O pensamento, enquanto sujeito absoluto, sem fundamento em outro, e enquanto único objeto da própria atividade, é o eu puro. Mas, para a função de pensar não é suficiente a identidade do pensamento consigo mesmo: é necessário um sujeito pensante e um objeto pensado. Eis, pois, que o eu puro dá origem a estas duas realidades por meio de uma ação primordial, inconsciente e imediata do pensamento: o sujeito pensante ou “eu empírico” e o objeto pensado ou “não-eu”. Entre os três: eu puro, eu empírico e não-eu existe uma distinção clara. Os motivos devem ser procurados na natureza diferente de cada um: o eu puro é identidade do pensamento consigo mesmo; o eu empírico é sujeito pensante; o não-eu é o objeto pensado. Logo, enquanto o eu puro existe por si mesmo, no seu primordial e absoluto pôr-se, sem contrapor-se a nada, o eu empírico existe como contraposto ao não-eu, e o não-eu como contraposto ao eu empírico. O eu puro tem prioridade absoluta (uma prioridade ontológica e não temporal) sobre o eu empírico e o não-eu. Finalmente, o eu puro é indivisível, enquanto tanto o eu empirico como o não-eu são divisíveis e multiplicáveis; a sua divisibilidade se origina do eu puro: “O eu indivisível põe em si mesmo um eu divisível e um não-eu divisível”.
Em A missão do douto, depois de ter demonstrado que o fundamento último do eu empírico, isto é, do homem, é o eu puro, Fichte pode facilmente deduzir que o fim último do eu empírico consiste em atingir o eu puro e que, para atingi-lo, ele deve remover todos os obstáculos colocados pelo não-eu: é somente anulando o não-eu que ele pode chegar à união perfeita com o eu puro. “Em outras palavras, tudo o que ele é deve ser referido ao seu eu puro, ao seu ser simplesmente como eu ou euidade. Tudo o que ele é, ele deve sê-lo exclusivamente porque ele é um eu; e o que ele não pode ser, ele não deve absolutamente sê-lo por esta única razão”.
Sempre em A missão do douto, Fichte ilustra aquelas que devem ser as tarefas principais da doutrina. Essas tarefas fundamentais são três: primeiramente, o estudo da natureza do homem, das suas aptidões e exigências; em segundo lugar, a identificação dos meios aptos para o desenvolvimento de tais aptidões e exigências; e, finalmente, a verificação do grau de cultura no qual a sociedade se encontra em determinado momento histórico, isto é, na determinação do grau de progresso já alcançado e do que ainda resta para ser alcançado. Ao estudo destas três tarefas dedicam-se respectivamente três disciplinas: a filosofia pura, a ciência filosófico-histórica e a ciência histórica. “A síntese destas três formas de conhecimento constitui aquilo que se chama ou pelo menos aquilo que deveria exclusivamente chamar-se doutrina”.
O homem está em constante progresso para a meta da “perfeita coerência sua consigo mesmo e de todas as coisas com a sua vontade”. A missão do douto consiste em promover este progresso, especialmente mediante a apromoção das ciências, porque delas “depende de modo imediato o progresso do gênero humano. Quem aceita aquilo, aceita isto”.
O PENSAMENTO FINAL DE FICHTE
No sistema de Fichte a transcendência do absoluto fica gravemente comprometida pelo fato de ele não ter existência autônoma em relação aos dois termos (eu empírico e não-eu) nos quais ele se realiza. Relativamente ao eu empírico, por exemplo, o absoluto não é mais do que um dever ser, um ideal a atingir.
A acusação de ateísmo e as críticas de Schelling e dos pensadores românticos, que antes o admiravam e apoiavam, induziram Fichte a reexaminar os problemas e a formulá-los em outra perspectiva. Esta reflexão deu origem à sua “segunda filosofia”, na qual o absoluto é apresentado de outro modo: não mais simples ordem moral do mundo, não mais puro ideal ou dever ser, mas fundamento real do eu empírico; o absoluto adquire uma subsistência própria, readquire as propriedades de Deus. Para sermos precisos, não se trata do Deus-pessoa do cristianismo, porque, para Fichte, os caracteres da personalidade estão sempre em conexão com a finitude do eu, mas se trata de um Deus subsistente e, a seu modo, transcendente, comparável, sob certos aspectos, ao uno de Plotino. É marcante, com efeito, a influência de Plotino na última especulação de Fichte: pode-se notá-la especialmente na doutrina das relações entre o homem e Deus. Deus é totalmente inacessível ao homem: é incognoscível e inefável, está fora da esfera do saber, do conceito e da palavra; não há, em última instância, outra via de acesso a ele a não ser a mística.