SOREN KIERKEGAARD
Um dos críticos mais agressivos e eficientes do sistema hegeliano é o dinamarquês Soren Kierkegaard.
Hegel pretendera deduzir a existência do indivíduo da idéia universal e encerrar nos esquemas de um sistema todo o universo.
Kierkegaard rejeita ambas as teses; a primeira, porque a existência do indivíduo é algo tão imponderável que não pode ser deduzida de nenhum conceito; a segunda, porque a mente humana é muito inadequada para compreender com um só olhar toda a realidade.
Além de Hegel, Kierkegaard criticou severamente também o mundo religioso do seu tempo, o qual tinha reduzido o cristianismo a pura exterioridade, a mero formalismo. A fé cristã, afirma ele, inclui o risco, a interioridade, o sofrimento.
A VIDA
Soren Kierkegaard nasceu em Copenhague, no ano de 1813, de pais já avançados em anos, sendo o último de sete irmãos.
Recebeu uma educação profundamente religiosa, concentrada nos aspectos mais rígidos do cristianismo; tinha grande veneração e afeto pelo pai, mas, pelos vinte anos, começou a ter por ele aversão e desprezo. A morte começara a fazer vítimas entre seus irmãos e irmãs: de vários indícios Kierkegaard concluíra que pesava sobre a sua família a vingança de Deus, por causa dos delitos cometidos por seu pai; suspeitava que a sua religiosidade se devesse não a santidade, mas a necessidade de expiar os próprios pecados. Quando o pai lhe confessou que tinha blasfemado contra Deus, quando tinha onze anos, e que tinha violado a doméstica antes de esposá-la, tocado por este ato de profunda humildade, Kierkegaard se reconciliou com ele e o amou af etuosamente pelo resto da vida.
Laureou-se em teologia na Universidade de Berlim, em 1840, mas renunciou à carreira de pastor, para a qual a láurea o havia habilitado. Na mesma ocasião rompeu o noivado com Regina Olsen, com a qual mantivera uma longa correspondência epistolar. Os motivos do rompimento não são claros; pode-se supor que tenham sido o seu desejo de não revelar à Regina os delitos do pai, a preocupação de não expô-la, juntamente com os eventuais filhos, à ira de Deus que pesava sobre os Kierkegaards, o desejo de liberdade para cumprir a missão religiosa para a qual se sentia chamado.
Nos últimos anos de sua breve existência Kierkegaard se empenhou em séria luta com a Igreja oficial, culpada, a seu ver, de ter traído o cristianismo, reduzindo-o a mero convencionalismo e formalismo. Faleceu aos 11 de novembro de 1855. Antes de expirar, foi-lhe perguntado se as suas esperanças se fundavam na graça de Deus em Jesus Cristo, ao que ele respondeu: “Naturalmente; em quem senão nele? “.
Durante a vida Kierkegaard não foi muito conhecido e também depois da morte permaneceu ignorado por muito tempo. Somente depois da primeira guerra mundial é que ele foi descoberto, lido avidamente e traduzido em quase todas as línguas. O seu pensamento, prematuro para seus contemporâneos, tornou-se da máxima atualidade em nosso século.
As suas obras principais são: Diário (em 12 volumes), Sobre o conceito de ironia (1841), Aut-aut (1843), Temor e tremor (1843), O conceito de angústia (1844), Estádios d.o caminho da vida (1845), Migalhas de filos’o fia (1844), Apostila conclusiva não científica (1846), Autoridade e revelação, também chamado Livro sobre Adler (1847), A enfermidade mortal (1846), O exercício do cristianismo (1850).
INTUIÇÃO FUNDAMENTAL E CRÍTICA A HEGEL
Kierkegaard poderia ter dado à sua filosofia o título de “o indivíduo e Deus”; de fato, libertar o indivíduo do sistematicismo no qual Hegel o havia encerrado, e indicar ao homem como tornar-se cristão são as suas duas maiores preocupações. Numa célebre passagem da Apostila está escrito: “O meu pensamento dominante era que foi esquecido em nosso tempo o que significa existir e o que significainterioridade”. Reabilitar estes dois conceitos é o objetivo da sua filosofia.
O maior responsável pela perda do conceito de existência era Hegel; a ele, portanto, Kierkegaard dirige suas críticas mais severas. Lemos no Diário: “Se, depois de terminada toda a sua lógica, Hegel tivesse escrito no prefácio que se tratava apenas de exercício mental, teria sido o maior pensador de todos os tempos, mas, deixando-a como a deixou, ele é simplesmente cômico
O sistema (o conhecimento completo de tudo), afirma ele, é uma prerrogativa de Deus: “Um sistema existencial não pode ser formulado. Significa isto que tal sistema é impossível? De forma alguma. Isto não está incluído em nossa afirmação. A própria realidade é um sistema para Deus; mas não pode sê-lo para um espírito existente. Sistema e completeza se correspondem, sendo existência o oposto de completeza”.
O homem não pode formular um sistema completo da realidade porque ele tem como seu modo de ser a existência, e a existência significa “o processo do devir”, a mutabilidade, a contingência.
Para um indivíduo sujeito à existência como é o homem, “a noção de verdade como identidade do pensamento e do ser é uma quimera da abstração ( ... ) não porque de fato não exista esta identidade, mas porque o cognoscente é um indivíduo existente, e para ele a verdade não pode ser uma identidade deste tipo enquanto ele vive no tempo”3.
Logo, a existência, contingente e mutável, não pode ser incluída no sistema, no qual tudo é regulado porque sujeito a leis universais e necessárias.
A existência é irredutível à lógica; quando Hegel pretendeu encerrar na lógica toda a realidade, viu-se obrigado a fazer exceção para a existência, porque as leis da existência são totalmente diversas das leis do pensamento. A existência é particular, enquanto o objeto do pensamento (da lógica) é universal 4; a existência não é uma categoria do pensamento, mas é qualitativamente diversa dele, e, por isso, “para pensar a existência, a lógica (o pensamento sistemático) deve pensá-la como ab-rogada, isto é, como não existente”.
A FILOSOFIA DO HOMEM
Para Kierkegaard, o homem tem como seu modo de ser a existência, estando, por isso, em contínuo devir: ele não é perfeito, totalmente acabado, mas está em fase de feitura, de aperfeiçoamento e ele mesmo é responsável por esta operação.
No devir do homem distinguem-se três estádios: estético, ético e religioso.
Estágio estético. No momento estético o indivíduo não tem compromissos nem finalidade: é o artista despreocupado no qual a fantasia predomina sobre a razão e a vontade.
Guiado pela fantasia, ele abraça a realidade exterior, o efêmero, o transitório: riquezas, honras e prazeres; esquiva-se da consciência, não se concentra em si mesmo, não faz um propósito sincero: é incapaz, por isso, de dominar-se. Exemplos típicos deste estádio são Don Juan, Fausto e Assuero (o judeu errante).
Estado ético. O indivíduo do momento ético é o que vive com compromissos, com seriedade e honestidade, que superou a instabilidade da juventude e se formou uma família. A forma característica do estádio ético, segundo Kierkegaard, é o matrimônio com sua seriedade e estabilidade, com seus deveres e esperanças.
Típico representante deste estádio é o assessor Guilherme, do qual fala a segunda parte de Aut-aut, empregado fiel e todo dedicado à esposa e aos filhos.
Quando o indivíduo percebe a insuficiência da moralidade, perde o sentido da segurança, da estabilidade e da suficiência que advinham da observância da lei.
O estádio religioso é o da fé como risco e incerteza. Exemplo típico dele é Abraão, pai da fé.
As características dos três estádios são resumidas, na Apostila do modo seguinte: “Enquanto a existência estética é essencialmente divertimento, a existência ética, luta e vitória, a existência religiosa é essencialmente sofrimento, e isso não por um momento, mas para sempre”.
Na Apostila Kierkegaard distingue no estádio religioso dois tipos de religiosidade, um fundado na religião natural, o outro fundado na religião revelada.
A FILOSOFIA DE DEUS
Em Kierkegaard a reflexão sobre Deus ocupa um lugar tão importante que os seus livros têm sabor mais teológico do que filosófico, mas o seu pensamento não se apresenta nunca em forma sistemática, sendo difícil apresentá-lo numa reconstrução ordenada.
Para sermos fiéis à terminologia kierkegaardiana, não deveríamos falar de Deus em termos de “existência”, mas de “realidade”, urna vez que Deus não é um existente, mas o Ser. Deveríamos, por isso, falar não da existência, mas da realidade de Deus.
Uma vez esclarecido, porém, que aqui empregamos o termo “existência” não na acepção kierkegaardiana, mas no sentido tradicional, não haverá perigo de ambigüidade.
Em relação a Deus, Kierkegaard distingue dois modos de existência, natural e sobrenatural.
Da existência natural escreve ele que é ridículo e ofensivo querer demonstrá-la: “É a maior falta de respeito provar a existência de alguém que está presente”.
Quanto à existência sobrenatural de Deus, aquela que ele tem em Cristo, é ela indemonstrável, podendo ser aceita apenas pela fé. Observemos que aqui a “existência” deve ser entendida no sentido kierkegaardiano porque, tornando-se homem, também Deus está sujeito ao tempo e ao devir como qualquer outro existente.
Os milagres não servem para esta demonstração porque o milagre “não existe para o conhecimento imediato, mas só para a fé ( ... )
quem não crê, não vê o milagre”.
Segue-se que a teologia natural é inútil e que a apologética é impossível: diante do tribunal da razão, cristianismo e islamismo se equivalem.
Entre o homem e Deus, entre a natureza humana e a natureza divina há uma diferença qualitativa infinita.
Esta diferença absoluta tem sua origem no fato de que enquanto o homem é um existente particular, incapaz de ver as coisas sub specie aeternitatis (‘sob o ângulo da eternidade’) ( . . . ), Deus é infinito e eterno.
Contra os idealistas, Kierkegaard precisa que a natureza de Deus não se manifesta imediatamente em suas criaturas: "Ele está presente em toda parte na criação, mas não diretamente. ( ... ) A natureza é, sem dúvida, obra de Deus, mas só a obra está diretamente presente, não Deus”. Crer que Deus esteja presente imediatamente é paganismo: “O paganismo consiste precisamente nisto, isto é, que Deus está em relação imediata com o homem, o qual se comporta como o observador atônito frente ao obviamente extraordinário (...), mas Deus longe de ser algo de óbvio, é, ao contrário, invisível, embora, na sua invisibilidade, esteja presente a tudo".
A FÉ
A fé é um dos temas preferidos de Kierkegaard. Contra o pensamento e a praxe religiosos do seu tempo, que a faziam consistir na adesão formal e intelectual aos dogmas, sem implicações pessoais, ele sustenta, com extraordinário vigor e riqueza de argumentos, a tese da subjetividade da fé. A experiência religiosa não pode ser autêntica e verdadeira, se for objetiva e desligada; para ser verdadeira, ela deve empenhar o sujeito, isto é, tornar-se subjetiva.
Na Apostila 14 faz-se distinção entre dois significados da subjetividade. Em um primeiro sentido, que evidentemente não é o da experiência religiosa, subjetividade indica aquilo que é acidental, excêntrico, arbitrário. Em um segundo sentido, subjetividade significa “tornar-se sujeito na verdade”, isto é, sujeitar-se a uma verdade.
Torna-se alguém sujeito na verdade quando se apropria dela, torna-a pessoal e vive dela, e a verdade “penetra sempre mais profundamente, torna-se interior. A experiência do cristianismo se torna pessoal, subjetiva, quando se pergunta: Como posso eu, como pode alguém participar da felicidade prometida pelo cristianismo?.
No conhecimento objetivo o que conta é a coisa (o quod, o “que”), no conhecimento subjetivo o que conta é o como (o quomodo). No conhecimento religioso, o que vale é a paixão pelo infinito: é ele oelemento decisivo e não o conteúdo.
Para destacar ainda mais a diferença entre conhecimento objetivo e conhecimento subjetivo, Kierkegaard precisa: “Quando falamos de algo objetivo, é fácil constatar se dizemos a verdade; quando alguém nos diz, por exemplo, que Frederico VI era imperador da China, podemos responder que não é verdade. Mas se alguém nos fala da morte e nos diz o que pensa sobre ela, é-nos difícil verificar se ele diz a verdade.
Vê:se claramente aqui que subjetividade não significa somente adesão pessoal a uma verdade, mas também ausência de elementos objetivos de controle para se estabelecer a verdade. Por causa destas duas características — compromisso pessoal e falta de garantia objetiva — o conhecimento subjetivo é um risco. O risco é um elemento inseparável da verdadeira experiência religiosa, da fé: “Sem risco, não existe fé, e quanto maior o risco, tanto maior a fé”
A fé é um risco porque requer a adesão pessoal a afirmações que, objetivamente, não apresentam nenhuma garantia, estando, ao contrário, em acentuado contraste com os critérios normais da verdade. A fé é um risco porque o seu objeto é o paradoxo, uma verdade que ultrapassa os esquemas da razão humana, uma verdade que não tem evidência objetiva.
O paradoxo não é absurdo; para Deus ele não é nem paradoxo;ele se torna tal em decorrência de sua relação com um existente.
Apesar de a fé ser um risco, a sua aceitação não é irracional: “Aquele que crê não só tem, mas também usa a razão, respeita as crenças comuns e não atribui a falta de razão se alguém não é cristão; mas no que se refere à religião cristã, ele crê contra a razão e, neste caso, usa a razão para certificar-se de que crê contra a razão. ( . . . ) O cristão não pode aceitar o absurdo contra a sua razão porque ela perceberia o absurdo e o rejeitaria. Ele usa, portanto, a razão para tornar-se consciente do incompreensível e em seguida adere a ele e crê mesmo contra a razão.
Quando o homem crê em Deus e nota a infinita diferença que separa a natureza divina da sua, prostra-se diante de Deus e o adora. “A adoração é a expressão máxima de relação de um ser humano com Deus. (...) O sentido da adoração é que Deus é absolutamente tudo para aquele que o adora”.
Quem crê e se abandona a Deus deve renunciar a tudo, e esta renúncia completa implica sofrimento, sofrimento não só pelo fato da renúncia, mas também porque quem crê sabe que sozinho não pode fazer nada. O sofrimento é inseparável da fé: ele é a característica da fé.
ANGÚSTIA E PECADO
O estado original do homem, que é o de inocência, consiste na ignorância do bem e do mal. Depois, por um processo misterioso que escapa a todas as leis da lógica, o homem caiu no pecado. Foi uma mudança de estado, um salto, semelhante pela natureza, mas oposto quanto à direção, ao salto da razão para a fé. O pecado não pode ser explicado pelos cânones da filosofia especulativa, pela dialéticaquantitativa de Hegel; ele é explicado pela dialética qualitativa do salto. A razão se escandaliza, mas, malgrado o escândalo, é incapaz de explicar o pecado. Entrevêem-se, contudo, na obscuridade do mistério, elementos que, apesar de não o tornarem inteligível, impedem que ele se torne absurdo.
A proibição de Deus, a consciência da própria liberdade e das próprias possibilidades, o sentimento de angústia pelo futuro e, finalmente, a opção por sair da ignorância e adquirir o conhecimento (do bem e do mal) são os fatores que enchem o abismo que separa a inocência do pecado. Antes da proibição existe a inocência acompanhada da paz, o repouso, a ausência de discórdia e de luta; depois da opção, estão presentes o pecado, a culpa, o desespero.
A passagem da inocência para a culpa é descrita na história de Adão por meio de imagens. Quando Deus ordena: “Da. árvore da ciência do bem e do mal não comerás”, Adão não compreende o sentido das palavras; a proibição o angustia porque desperta nele a possibilidade de liberdade, torna-o consciente de um poder cuja natureza e cujo alcance ele ignora, sentindo-se confuso por isso: “Assim a inocência é levada ao máximo, quando então começa a dissipar-se. Ela se angustia em relação ao pecado e ao castigo. Não é culpada, mas sente a angústia de já estar perdida”. Segue-se a queda. Nem a psicologia nem a filosofia especulativa podem explicá-la: ela é um salto qualitativo. O pecado entra no homem, “e querer explicar pela lógica a entrada do pecado no mundo é uma tolice que só as pessoas dadas à preocupação ridícula de explicações podem imaginar”. O certo é que a queda foi devida ao saber: o saber perde o homem. A angústia do nada, da proibição e do juízo ainda não é pecado, mas, no estado de liberdade no qual o espírito passa do sonho para a vigia, põe a inocência na possibilidade de pecar. A angústia pode ser comparada com a vertigem: é a vertigem da liberdade, a qual sobrevém quando o espírito, “perscrutando as profundezas da sua própria possibilidade, atinge o finito para apoiar-se nele. Nesta vertigem a liberdade sucumbe”. Erguendo-se, ela se vê culpada.
O pecado situa o homem na sua extrema individualidade, ele é o principium individuationis (princípio de individuação) último. A consciência do pecado individual, constitui o singular, “põe o singular como singular”. O pecado é a categoria existencial por excelência: ele diz respeito a mim e somente a mim e não se refere a nenhum outro fora de mim.
Cristo libertou o homem do pecado, sem privá-lo da individualidade.
CONCLUSÕES SOBRE O PENSAMENTO DE KIERKEGAARD
O pensamento de Soren Kierkegaard obedece mais a preocupações teológicas do que a filosóficas: a sua intenção primária é analisar a situação do homem diante de Deus à luz da revelação cristã.
A temática teológica não o impediu, contudo, de estabelecer um discurso filosófico muitas vezes de altíssimo valor. É o que se vê, por exemplo, quando ele examina a natureza do indivíduo, os limites do sistema, os conceitos de existência, de angústia, de interioridade, as relações entre fé e razão. As suas idéias sobre este assunto significam passos importantes no caminho da filosofia.
Parece-nos, todavia, necessário fazer uma séria reserva a respeito do que ele diz sobre o pecado. Como afirma Kierkegaard, o pecado é inegavelmente uma categoria existencial: ele é um fato pessoal como o é também a morte. Mas isto não autoriza a concluir que ele seja o principium individuationis da pessoa humana. O princípio de individuação é aquilo que constitui a pessoa como pessoa. Ora, esta propriedade não pode pertencer ao pecado, que é um não-ser.